Uma vez, eu fui almoçar com a minha avó em um restaurante português no estádio da Portuguesa, o “Cais do Porto”.
Meu avô já havia falecido e ela estava morando com o irmão dela, lá na Zona Oeste. Era muito longe e, no fim de semana antes do Natal, era uma forma de eu passar um tempo com ela, já que eu passaria o Natal com meus pais na casa da minha outra avó, mãe do meu pai.
Comemos todos os quitutes portugueses com os quais eu cresci e que moldaram tanto o meu paladar que me deixaram completamente viciada nas comidas feitas à moda portuguesa.
O Alzheimer da minha avó já dava sinais claros de seu avanço rápido e ela estava cada vez mais vulnerável. A mulher altiva e segura de si havia sumido, dando lugar à uma senhora debilitada e dependente – coisa que ela sempre abominou com todas as suas forças.
Cortava meu coração vê-la daquela forma e eu fazia tudo o que estava ao meu alcance por ela, mas ela mesma havia me podado de muitas coisas. Acho que esse peso jamais sairia da minha consciência: ter permitido que ela me afastasse.
O restaurante era tipicamente decorado, com vasos de velas com parafinas coloridas adornando as mesas, toalhas xadrezes, quadros e instrumentos portugueses nas paredes e uma banda ao vivo dando vida ao penúltimo fim de semana do ano.
Quando cheguei, junto com o Victor, meus tios e minha avó já estavam lá, sentados à uma mesa na parede. O restaurante estava lotado, principalmente com personalidades da comunidade portuguesa: pelo visto, aquele dia era o lançamento de um EP da banda.
Enquanto eles tocavam músicas típicas da terra natal da minha avó, eu tentava desesperadamente pedir uma Coca-Cola original sem gelo – o melhor remédio para uma dor de estômago tremenda que eu sentia desde a manhã daquele dia. Eu jamais admitiria que essa dor completamente inoportuna me impedisse de comer bolinhos de bacalhau (que, por mais deliciosos que fossem, nunca se comparariam aos que Dona Angela fazia todo Natal e Páscoa) e as rodelas de alheiras fritas dispostas em cestinhas como petisco.
Minha tia avó Teresa estava cansada de acompanhar meu tio Manuel em reuniões na Casa de Portugal e no Consulado, então ela não aguentava mais comer bacalhau. Eu, por outro lado, não comia com a mesma frequência, mas também não era muito fã do peixe. Meia posta já era o suficiente para eu comer um prato inteiro de comida.
Quando o tio perguntou se já queríamos pedir o almoço, eu e a vó Tê dividimos um prato de bife com batata frita e o Victor comeu um sozinho, enquanto a vó e o tio se deliciavam com um almoço típico português: bacalhau ao forno com brócolis, cebola e batatas cozidas, arroz branco, salada de grão-de-bico e, claro, uma taça de vinho para cada um.
Minha avó, sendo irmã do presidente da Casa de Portugal, era tratada tal qual uma rainha, mas eu sentia que por vezes, ela não entendia muito bem o que estava acontecendo.
Quando os cantores disseram que a gente podia escolher algumas músicas típicas para que eles cantassem, minha avó pediu Uma Casa Portuguesa. Se eu já tinha ouvido essa música, ela tinha sido completamente apagada da minha mente.
Eu estava parecendo um anzol: tinha uma mão dada para a minha avó e a outra para o meu namorado, mas meus braços estavam cruzados.
Dei risada daquela posição completamente desastrosa para a minha coluna e, depois de um tempo, consegui me ajeitar melhor.
Minha avó estava completamente focada na banda e, quando a música pedida por ela começou a tocar, ela cantou inteira.
O Alzheimer é uma doença estranha. Ela não lembrava que eu tinha dado uma blusa e um tênis para ela de Natal há 20 minutos, mas se lembrava de uma música de décadas atrás.
A expressão triste dela se alegrou um pouco ao ouvir a música e ela batia palmas de forma lenta e delicada no ritmo da música, entoando cada estrofe com uma facilidade incrível.
Eu filmei aquela cena, me sentindo feliz por vê-la feliz. Foi duro segurar as lágrimas naquele momento, mas eu consegui.
Quando eu cheguei em casa, fui baixar algumas músicas do Roberto Leal, um cantor português que fez muito sucesso no Brasil e que eu tive a grande oportunidade de vê-lo bem de perto, em um show exclusivo, exatamente na Casa de Portugal. Baixei As Pernas da Carolina, Chora Carolina (afinal, o que ele tinha com a Carolina?), Vira-Vira, Fatamorgana… E Uma Casa Portuguesa.
Ouvi as músicas sem prestar muita atenção, dançando quando ele cantou Vira-Vira e entoando os versos de Fatamorgana como se eu fosse uma das dançarinas que aparecem no vídeo.
Quando começou Uma Casa Portuguesa, eu parei para prestar atenção na letra e, o que eu ouvi, me trouxe às lágrimas imediatamente.
Era como se o Roberto Leal estivesse descrevendo a casa dos meus avós: dois portugueses que nunca deixaram suas tradições morrerem.
Jamais faltou pão e vinho sobre a mesa e ai de alguém que chegasse lá e não ficasse para comer.
“Eu vou fazer um bolo de fubá com laranja” ou “vou fritar pastéis” ou então “vou fritar uns bolinhos de chuva (ou de arroz)” eram as frases mais comuns de ouvir da minha avó, principalmente aos sábados e domingos à tarde.
Eu dava risada quando minha mãe vinha me buscar depois do trabalho: ela entrava e conversava uns quinze minutos com a minha avó antes de “tá bom, vou embora. Vem fechar a porta pra mim?”. A resposta da minha avó era sempre a mesma: “vou, deixa só eu terminar de refogar a couve/colocar o feijão na pressão/terminar de fritar as linguiças-bife-frango/tirar a pressão da panela da carne”. Ela sempre tinha uma desculpa pra liberar minha mãe 20 ou 30 minutos depois.
No Natal, quando eu era pequena, meu avô comprava uma caixa de panetones. Mas não era UM panetone não. Ele comprava, direto na Bauducco, uma caixa com 10 ou 12 unidades de panetones.
Minha avó me catava pela mão e saía distribuindo panetone pelos vizinhos que ela conhecia há décadas, na semana do Natal. Era pra vó Lurdes, pra vó Quita, pra Dona Helena, pro pastor, pra Isabel, pra Dona Deise, pra Vó Dô, pra Dona Angélica, pro tio Joaquim, pra tia Cidinha (e talvez até um pra Marlene).
Meu avô também fazia cartinhas com notas de R$50,00 ou R$100,00 para dar para o carteiro e para os lixeiros que passavam. Geralmente os cartões de Natal vêm com mensagens padronizadas do tipo “um Natal repleto de felicidade e alegria”. Meu avô ainda completava com “são os votos do moradores do número 80”, com sua caligrafia impecável.
Ah, e os cartões não eram simples cartões na Natal que a gente compra em lojas de conveniência ou na papelaria do bairro: ele fazia questão de ajudar uma associação de pintores que não tinham braços e mãos, então pintavam com a boca ou o pé.
Tudo o que ele fazia era para ajudar aos outros. Era curioso como ele sempre fazia questão de, na manhã do dia 25, pegar a agenda telefônica e ligar para os todos os outros parentes de Portugal para desejar um bom Natal e próspero Ano Novo.
Meu coração nunca vai se esquecer de tudo de bom que ele fazia.
A música também fala de quatro paredes caiadas. Paredes caiadas são paredes revestidas de cal. Minha avó sempre odiou paredes coloridas e era engraçado vê-la xingando que as tinha (inclusive o dia que a minha mãe resolveu pintar a parede da sala de laranja, foi realmente marcante). Ela não gostava de cores fortes e, para pintar o exterior da casa deles de verde, foi uma luta. Meu avô nem tentava opinar e a frase de efeito dele era: “faça da forma como preferir”. Ele literalmente só aparecia para passar o cartão.
Acho que nunca vou encontrar uma música tão caricata. Minha avó amava colocar alecrim na comida e eu puxei esse gosto dela. Minha mãe odeia.
Sempre tinha uvas, apesar de não serem as “doiradas” que menciona o verso. Meu avô gostava daquela pequenininha doce, que parecia revestida de veludo. Não sei o nome, nunca gostei dela.
Na varanda da sala, minha avó tinha um jardim que ela cultivava diversos tipos de flores: os temperos e plantas medicinais ficavam nos vasos do quintal e no canteiro da garagem.
Ali, na varanda, ela tinha um pezinho de jasmim, uma flor amarela que quando floria, enchia a calçada com suas pétalas, uma flor que só abria durante o dia e uma pequena porção de rosas vermelhas e cor-de-rosa. Vez ou outra, ela pegava uma e colocava em um pote com água na cozinha.
Talvez uma das únicas manias de portugueses que não tinha lá era o São José de azulejo. Ela odiava, dizia que era brega. Eu dava risada e talvez não tivesse na minha casa, mas achava tão tradicionalmente português que não ligava muito.
A casa da vó era bem iluminada com janelas enormes e a sala não tinha uma das paredes: eram portas de vidro que davam para a varanda. Durante o dia, ficava tudo iluminado e a gente só precisava acender as luzes depois das cinco da tarde, mais ou menos.
O sol entrava e aquecia um pouco aquela casa gelada: no verão era maravilhosamente ventilada. No inverno, parecia uma amostra grátis de uma viagem para o Alasca.
Como todas as famílias do mundo, existiam meses com mais ou menos condições financeiras. Quem não passa por isso?
Mas nunca me faltaram beijos e abraços, palavras carinhosas e colo – literalmente, porque mesmo depois de 18 anos, eu ainda deitava na perna do meu avô enquanto ele assistia ao seu tão amado futebol.
Sãopaulino roxo, ele não esperava exatamente o jogo do São Paulo para assistir: quaisquer 22 caras correndo atrás de uma bola era o suficiente. Várias vezes eu nunca tinha ouvido falar daqueles times e ficava sabendo que eles eram jogadores do sub-16 da série D.
Ah, claro, muito importante mencionar: era um olho na TV e os fones no ouvido com o rádio ligado em outro jogo, além do caderno de esportes do jornal semanal na mão. Ele era 1001 utilidades quando se tratava de futebol.
Quando ele estava no hospital, eu pedia para as enfermeiras ligarem no jogo: o HCor sempre teve TV à cabo, então era SporTV e ESPN o dia todo.
Voltando à casa portuguesa dos meus avós, eu preciso dizer que a minha avó, por ter uma casa muito grande, sempre teve medo de assaltos (justificado, visto a quantidade de vezes que entraram lá), então ela mantinha tudo fechado – portas, janelas, vitrôs e qualquer outro tipo de saída para a rua.
A casa era ventilada e aberta? Claro. Mas só das 10h ao meio-dia. Depois, ela fechava e trancava tudo, a ponto de eu deitar no piso frio para aplacar o calor que o verão de São Paulo trazia plenamente entre os meses de outubro e março.
Basta pouco pocochinho para alegrar uma existência singela, diz Roberto na música. E realmente, eu não precisava de muito para ficar bem com eles. Quando eu era pequena, eu passava meses na casa deles. Julho? Se eu não viajava com meus pais, eu quase não ficava em casa. Foi nessa brincadeira que eu comecei a assistir Naruto e Camundongos Aventureiros (e Rupert, e o Pequeno Urso, e Os Sete Monstrinhos, e Cyberchase).
O que? Os desenhos antigos eram muito bons, tá?
Não lembro da minha avó fazer caldo verde, mas ela amava sopa.
Jesus, era todo o dia, estando frio ou calor. Mas não essas sopas que a gente vê nos restaurantes hoje.
A sopa da vó tinha sustança: macarrão, pelo menos uns quatro ou cinco tipos diferentes de legumes, couve e carne. Chegou até a colocar linguiça calabresa em uma ou duas panelas.
Lembrar deles me dói porque eu nunca mais vou ter o que eu tinha. Meu avô se foi, minha avó às vezes não se lembra de mim e da minha mãe e a casa está alugada.
Se eles puderem ler isso um dia, saibam que vocês fazem muita falta na minha vida. Eu sei o quanto eu curti meus avós, mas nunca vou achar que foi o suficiente.
Meu coração é todo de vocês e é muito difícil escrever isso sem sentir minha garganta embolar e meus olhos marejarem.
Daria tudo o que eu tenho para tê-los ao meu lado novamente. Ou pelo menos para poder dar aquele abraço que vocês me xingavam tanto porque eu machucava.
Meu coração é partido porque vocês não estão comigo.
Mas um dia, espero, a gente vai se encontrar de novo. E eu vou poder dar todo o amor que eu acho que não dei, todos os abraços que eu não dei.
Eu amo vocês e sinto tanta a sua falta que, mesmo depois de quase cinco anos, parece que foi ontem.
Seu Américo era exemplo de honestidade, bondade, responsabilidade, marido, pai e avô.
Dona Angela era exemplo de força, teimosia, integridade e uma excelente cozinheira e dona de casa.
Dona de uma casa portuguesa.
É uma casa portuguesa, com certeza
É com certeza uma casa portuguesa.