Formosa

Em 1985, a banda brasileira Zero lançou uma música chamada “Formosa”, que faz parte do seu EP de lançamento Passos no Escuro.
Depois de muitos anos, criei coragem e fiz um conto, baseado nessa música. Espero que gostem!
Me contem nos comentários o que acharam ❤️

Toda a noite eu deito
E não consigo adormecer
A luz se apaga e no quarto escuro
Eu continuo a te ver…

.

.

Carl acordou assustado, o suor escorrendo-lhe pelas costas. Olhou pela janela e viu a silhueta de uma mulher, a mesma mulher que vinha lhe assomando seus sonhos. Sua mulher. 

Não, ela não é mais minha. 

Olhou no relógio e viu que não tinha conseguido dormir nem vinte minutos.

Suspirou, levantando-se. Passou a mão na testa e apoiou-se no peitoril da janela, olhando a rua. Viu uma pessoa caminhando na rua. Mas já era tão tarde… O cabelo loiro jogado para trás pelo vento enquanto andava, um sobretudo preto, os sapatos vermelhos que ele a comprara há tantos meses, os lábios rubros com o batom que ele adorava tirar-lhe.

Apertou a vista, tentando fazer com que seu coração não criasse uma expectativa que seu cérebro sabia que não era real. A mulher parou logo baixo de sua janela, olhando-o e quando ele permitiu que seu coração pulasse uma batida em esperança, a imagem dela desapareceu como fumaça.

Seu cérebro tinha adquirido a mania de lhe pregar peças e, depois de dois meses vendo a imagem da loira desaparecer da sua frente como se nunca tivesse aparecido, ele se acostumara.

Carl olhou no relógio: 03:45h. Não dormiria mais.

Tomou uma ducha rápida, para tirar o suor que insistia em lhe cair pelos olhos. Saiu do chuveiro, enrolou a toalha na cintura e parou em frente ao espelho. Passou a mão por sua imagem embaçada e vislumbrou a silhueta da ex-namorada refletida. Aparentava ainda tomar banho e ele analisou seu corpo, olhando cada curva, observando a água que pingava, os cabelos grudados nas costas pelo jato do chuveiro.

Balançou a cabeça em negativa. Como fizera tantas outras vezes, abriu o espelho para pegar a escova e a pasta de dente e, ao fechá-lo novamente, a imagem se fora. 

Terminou de se arrumar e chegou a cogitar a hipótese de pegar a chave do carro, mas logo desistiu. Voltaria logo, o lugar que ia era certo, em no máximo três horas estaria de volta. Passou na cozinha e pegou na geladeira a garrafa de vodca da qual bebera mais da metade antes de dormir. Virou o resto, sentindo queimar a garganta, mas já sentindo sua cabeça um pouco mais leve ao passar pela porta. Era pouco, mas quando chegasse beberia mais. Agora, ele só precisava de uma coisa.

~.~

Ao chegar na porta dela, bateu timidamente, mas sabia que ela também estaria acordada, por mais tarde que fosse. Ou cedo, pensou. Afinal, dependia do ponto de vista. A morena com olhos azuis tinha uma expressão fechada, como se soubesse que ele iria à sua casa naquela hora para cumprir seu propósito da noite e o fizesse a contragosto. Ela abriu a porta e deu passagem para que o rapaz entrasse. Carl beijou o pescoço da menina, as mãos não pedindo permissão para tirar o robe que era a única vestimenta que lhe cobria o corpo.

Beijou o corpo inteiro da morena, mas jamais os lábios. Em casa mais tarde, em sua ressaca da luxúria que mantinha com ela, ele riria da única ação não praticada com a menina. Que pensamento de puta.

Carl não conseguia tirar as mãos do corpo dela mas nunca lhe punha os olhos por mais do que o necessário. Não queria olhá-la. Em sua mente, ela tinha exatamente as formas de Megan. Seu cabelo era loiro e seus olhos eram castanhos. Seu quadril não era tão grande e ela era mais baixa.

Era errado, ele sabia. Mas não era se importava. Ele fechava os olhos e qualquer pessoa poderia ser Megan porque ela era a única que povoava seus pensamentos.

No momento em que se entregava ao clímax, a culpa o acometia e ele não conseguia olhar para Heather, mas a sombra de Megan passava por trás da morena, o fazendo gozar olhando a imagem da loira que desaparecia logo em seguida. Chegou até a chamar Heather uma vez ou duas pelo nome da loira, mas não conseguiu pedir desculpas. Só fingiu que nada acontecera.

Heather também aparentava não se importar. Sempre que terminavam, acendia um cigarro, vestia seu robe novamente e se sentava na cadeira da varanda. Fumava um cigarro inteiro, que era o tempo de Carl vestir-se e dar-lhe um beijo casto na testa, já saindo da casa.

Mas essa noite, ela parecia diferente. Algo nela o chamava a atenção e Carl não conseguia descifrá-la.

– O que houve, Heather? – perguntou ele.

Heather não respondeu de imediato. Tragou o cigarro aceso profundamente antes de respondê-lo, ainda sem olhá-lo:

– Não podemos continuar com isso mais, Carl. Hoje foi a última vez.

Carl a fitou longamente. Imaginou que chegaria esse dia, mas pensou que tivesse armado um acordo silencioso com a morena. Talvez o acordo tenha sido unilateral.

Mas provavelmente ela não estaria errada. Não houve uma única vez em que Carl se deitou com ela pensando exclusivamente na morena ao seu lado e ninguém merecia passar por isso. Ele sempre pensava em Megan. Afinal, quando ele fechava os olhos, qualquer pessoa poderia ser sua loira.

Mas ela não é mais suanão é mesmo?

Carl suspirou e concordou com Heather. Não discutiria com ela, não contestaria sua decisão. Se as posições fossem invertidas, provavelmente faria o mesmo. Terminou de vestir-se e se aproximou dela, pensando se talvez ela o permitisse um beijo de adeus, mas ela não se virou. Continuou olhando o pequeno movimento que se iniciava em sua rua com os primeiros raios de sol.

Carl olhou o relógio. 05:12h. Respirou fundo e pôs-se a caminhar em direção à sua casa. Não era longe, mas tinha a distancia o suficiente para que ele pudesse organizar seus pensamentos em relação ao tipo de sub-vida que estava levando desde que Megan o deixara.

Enquanto Carl caminhava até sua casa, ela reapareceu, caminhando ao seu lado. Ele não se virou para ela. Sabia que ela estava ali, não tinha a necessidade. Lembrou da primeira vez que ela aparecera a ele, há 45 dias. Achou que tinha ficado maluco e que estava vendo coisas, mas a frequência começou a ser tanta que ele se acostumou, aceitando ela como uma sombra indesejada mas assídua. Tentara de todas as maneiras apagar essas visões, mas nada surtira efeito. Começou se afundando no trabalho achando que, se se cansasse muito, adormeceria com rapidez, sem ter a chance de vê-la. Não deu certo. Rolava na cama diversas vezes, por muitas horas e sempre que olhava a parede do quarto escuro, via sua sombra projetada devido a luz da lua.

As visões eram tão fortes e cada vez mais realistas que Carl jurou que podia sentir o perfume dela invadir suas narinas. Em um dia de desespero em um bar, ele foi atrás dela. Repetira esse ritual por dez dias seguidos, mas ela insistia em lhe bater a porta na cara. Insistia em não lhe atender aos telefonemas.

As lembranças eram tão sólidas que Carl so percebeu que estava parado em frente a sua casa quando viu a sombra de Megan passar pela janela da sala. Pegou a chave, destrancou a porta e entrou, jogando sapatos em um lado e camisa de outro. Deitou-se na cama, ignorando completamente o despertador que insistia em tocar. Não é como se eu ainda tivesse um emprego, pensou desgostoso.

Seu chefe o despedira no fim da semana anterior, alegando que seus atrasos eram constantes e que, desde que Megan o deixara, nunca mais conseguira cumprir com suas tarefas adequadamente. Filho da putaO que ele sabe sobre sentimentos?

Deitado na cama, inerte, ele recordava-se de quando conhecera Heather. Há quase um mês, nesses dias de bebedeira, ele encontrara uma moça bonita e morena, com lindos olhos azuis. Culpado, lembrou-se do primeiro pensamento que lhe ocorrera naquele momento: Lindos… Mas não são iguais aos dela.

Conversaram, beberam e Carl, por mais que tentasse, não se recordava de como tinha ido parar aos beijos com ela no canto do bar. Também não se lembrava da maneira que os fatos se sucederam, mas lembra-se de acordar com sua cabeça latejando fortemente e com uma mulher ao seu lado que nao era Megan. Se sentiu péssimo, mas, de forma estranha, continuou indo ao mesmo bar e encontrando a mesma mulher. Continuou se encontrando com ela e não conseguia conversar, era tudo puramente físico.

Não entendeu também como ela continuou aceitando as coisas da forma com a qual elas se tornaram. Mas agora ela dera um fim e, de qualquer forma, Carl não se sentia mal por isso.

Qualquer corpo pode ser o delase eu fechar os olhos, pensou.

Olhou para a sombra da loira, que continuava na porta do banheiro, olhando-o com curiosidade como Megan fazia antes de escolher algo para comer ou vestir-se.

Durante vários dias, Carl cogitou a hipótese de se entregar e se matar. Preparara as lâminas para cortar os pulsos, aprendeu na internet como fazia um nó de forca e até mesmo comprara uma arma. Mas, na hora H, ele travava e não conseguia levar seu suicídio a diante. Algo o impedia. Nos primeiros dias, ele quis acreditar que fosse Megan, mas hoje já não via dessa forma. 

Quando virou-se na cama, ele viu sua constante companhia deitada junto a ele e, pela primeira vez, olhou em seu rosto. Sentiu seus olhos lacrimejarem de saudade, mas as teimosas lágrimas nao caíram. Talvez estivessem presas ou talvez ele ja as tivesse derrubado tantas vezes que elas não queriam mais sair.

Pela milésima vez, Carl olhou recitou as palavras que deixara na caixa postal dela da última vez que ligara para Megan. As mesmas que vinha dizendo todas as vezes que se deparava com ela em seu quarto ou em qualquer momento que estivessem sozinhos e ele não precisava explicar para todos que ele falava com o fantasma de uma pessoa viva:

– Não sei por que você prefere duvidar de quem te diz que sente a tua falta e não consegue ser feliz. Rolo em minha cama a noite inteira sem saber se insisto em te procurar ou se tento te esquecer…

Sobre GabisNika | Gabriela Resende - Escritora

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Uma resposta para Formosa

  1. Ricardo Resende disse:

    imagino isso acontecendo em uma cidade cinza e chuvosa….

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